Dirigido por Luchino Visconti e lançado em 1971, o filme Morte em Veneza, livre adaptação do romance homônimo de Thomas Mann, pode ser considerado um de seus filmes mais difíceis, nas palavras de Túlio Becker(1) inclusive alcançou sucesso mundial devido a seu tema central, a paixão de Gustav Van Aschembach pelo jovem polonês, de 13 anos, Tadzio.
Tanto no livro como no filme, o tema principal é o conflito do personagem principal com seus valores tradicionais burgueses, que é narrado de forma gradual, possibilitando ao espectador acompanhar as mudanças físicas e psicológicas ao longo da narrativa. A degradação moral do personagem, que se constitui em uma visão pessimista do próprio autor sobre seus contemporâneos, é reflexo da convulsão social do período.
A chegada de Morte em Veneza as salas de cinema gerou um grande debate com relação ao homossexualismo, inclusive afirmou-se na época que Visconti optou por transformar em roteiro, o clássico literário, por ser o homossexualismo um elemento de união entre ele e Thomas Mann, ao mesmo tempo em que trazia a polemica do homossexualismo á cena. Essa questão permanece sem resposta, se é que há uma, o interessante é que as relações entre literatura e cinema são usuais, pois o cinema é verdadeiramente uma arte impura, apreende e conjuga elementos de distintas formas de arte (2) nada mais comum que a adaptação de romances para o telão. Para melhor compreender essa ligação, seguiremos o conselho de Peter Burke (3), que afirma que “para melhor estudar o filme é necessário estudar o diretor”, nesse caso buscaremos entender também o autor, pois só a diferença de tempo histórico em que cada obra está inserida, já amplia essa discussão, a saber, Mann aborda o homossexualismo na década de 10, enquanto Visconti o faz na década de 70.
REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS:
Thomas Mann ganhador de um Prêmio Nobel (4) de literatura em 1929 escreveu, entre outras obras, Os Buddenbroks (1901), Morte em Veneza (1912), A Montanha Mágica (1924), O Doutor Fausto (1947). Nasceu em 1875 em Lübeck, Alemanha , filho de Johann Heinrich Mann, comerciante, e da brasileira Júlia da Silva Bruhns (5). Muda-se para Munique, em 1891 e passa a dedicar-se exclusivamente a Literatura. Seu primeiro livro, Os bruddenbroks, narra a história de uma família e sua degeneração ao longo de 4 gerações.
Apesar de rumores acerca de sua homossexualidade, casa-se em 1905 com Katia Pringsheim, com quem teve 6 filhos. Sua ação política, num primeiro momento, se relacionava aos conservadores, defendendo a entrada da Alemanha na 1° Guerra Mundial, no entanto a partir da década de 20, passa a defender a Republica de Weimar, tornando-se inimigo potencial do futuro regime totalitário.
Assim, com a ascensão do nazismo, Mann viu-se obrigado a exilar-se na Suíça (1933), seus livros foram proibidos na Alemanha, seu título Honoris Causa da Universidade de Bohn foi retirado e no dia 2 de dezembro de 1936, o jornal Völkischer Beobachter (Observador Popular) publicou seu nome e dos membros de sua familia na lista de expatriados.
“Um escritor alemão, acostumado à responsabilidade através da língua, deve agora silenciar? Silenciar absolutamente perante o mal irreparável, que no meu país foi e é praticado em corpos, almas e espíritos, no direito e na verdade, na humanidade e na pessoa? Não foi possível. E assim vieram as manifestações de minha parte contra o programa nazista. Minhas posições contrárias a ele ficaram inevitavelmente claras, tendo levado ao absurdo e ridículo ato de meu expatriamento.(6)
Reside na Suiça até 1938, quando a convite da Universidade de Princeton resolve se se mudar com a familia para New Jersey, EUA.
Sua permanência nos EUA assegurou-lhe a conquista da cidadania americana em 1944. Porém, na década de 50, a maçica perseguição a intelectuais e artistas promovida pelo Macarthismo, obrigou Thomas Mann a retornar para a Europa. Decidiu-se por não voltar à Alemanha, retorna então para a Suíca, onde faleceu em 1955.
Luchino Visconti nasceu em Milão, Itália, filho de uma família aristocrática, seu pai Giuseppe Visconti, conde de Modrome, e sua mãe, Carla Erba, herdeira de uma das maiores industrias farmacêuticas da Itália.
Permaneceu na Itália até meados da década de 30, quando se muda para Paris, França. Freqüentador assíduo de Óperas, torna-se grande amigo de Coco Chanel (7), que anos mais tarde (1936) lhe apresentaria ao cineasta, integrante da tendência cinematográfica Realismo Poético, Jean Renoir, que trabalharam juntos nos fimes Passeio no Campo (Une partie de campagne) e La Tosca.
Seu retorno à Itália, ainda durante a 2ª Guerra Mundial, resultou numa aproximação com o Partido Comunista Italiano, onde ficou conhecido como Conde Vermelho. Sua inclinação marxista sempre foi alvo de críticas, entre os conservadores italianos e também entre os membros do partido. Homossexual assumido – “dado aos luxos da vida parisiense”, descendente direto de linhagem nobre, e com enorme fortuna, era tido com desconfiança por colegas de Partido. Salvador Dali chamava-lhe de “um comunista que só gostava de luxo”.
Outra postura de Visconti assumida em seu retorno para a Italia nos anos 40 é a paixão pelo cinema. Vende jóias da família para produzir seu primeiro longa-metragem, Obsessão (Ossessione), lançado em 1943, precursor do movimento neo-realista. Sua primeira obra, adaptação não autorizada de “O Destino Bate à sua Porta” - romance noir de James M. Cain, já encontra resistencia por parte dos fascistas, sendo censurado por abordar o drama de uma mulher que arquiteta, junto a seu amante, um plano para assassinar o marido.
No fim da Segunda Guerra, Visconti permite que seu palácio fosse utilizado por membros da resistência comunista, e ainda participa de ações armadas contra os ocupantes alemães. Como resultado foi preso, brevemente, pela Gestapo em 1944, o que resultou na realização do documentário Dias de Glória (Giorni di gloria), no qual aparece a execução de um comandante fascista.
Ainda dentro de suas obras de caráter político, A Terra Treme foi produzido em 1948, a pedido do Partido Comunista, Belíssima (1951) e Rocco e seus Irmãos (1960) todos em convergência com o Neo-realismo Italiano, que “além de uma nova estética, o neo-realismo conformou-se com uma nova ética: a social”(8)
A partir de então, Visconti entra para uma nova fase em sua filmografia, uma fase mais pessoal, dentro do seu universo – nobreza e degeneração - desse período destaca-se O Leopardo (1963), seu maior sucesso de bilheteria, e a trilogia sobre a decadência alemã, Os Deuses Malditos (1969), Morte em Veneza (1971) e Ludwig (1972).
Sua fama foi além do cinema, ganhou reconhecimento por seus trabalhos no teatro e como diretor de óperas. Faleceu na cidade de Roma, em 1976, vítima de um ataque cardíaco.
COMPARAÇÕES ENTRE A NOVELA E A OBRA FILMICA:
As diferenças entre a novela e o filme encontram-se desde o inicio, porem neste momento podem ser ainda reconhecidas como um processo necessário para a adaptação de linguagem, dessa forma, Visconti oculta do espectador a saída de Gustav Von Aschenbach de Munique para uma ilha do Adriático, onde repousara por 1/2 semana antes da decisão de partir para Veneza. Este detalhe parece de pouca relevância na história, porém no decorrer desse de tempo, inúmeros presságios com relação ao futuro próximo são trazidos ao leitor, assim como uma contextualização acerca da “busca” do personagem. Outra alteração percebida, a priori, é com relação à atividade profissional de Gustav. No romance, o mesmo aparece como escritor, enquanto no filme o personagem dedica-se a música.
Uma das passagens aproxima-se muito em ambas narrativas, a visualização de um grupo de amigos no barco com destino a Veneza, no qual um homem já idoso deixa-se levar pela embriaguez da bebida e da paixão. Visconti apresenta tal cena como momento chave em sua história, visto que o “espetáculo” aos olhos do personagem suscita-lhe grande desprezo, sem imaginar que similar comportamento está fadado ao seu destino.
Um dos viajantes, num terno de verão amarelo-claro, de corte ultra-moderno, gravata vermelha e um panamá de abas audaciosamente viradas para cima, sobrepujava a todos em alacridade com sua voz esganiçada....
...Era um velho, não havia dúvidas. Rugas rodeavam-lhe os olhos e a boca, o carmesim baço das faces era ruge, o cabelo castanho sob o panamá de fita colorida, uma peruca, o pescoço, flácido, com os tendões à mostra, o bigodinho revirado e a mosca no queixo, tingidos, a dentadura completa e amarela, que exibia rindo, não passava de uma prótese barata. E suas mãos, com anel de sinete em cada indicador, eram as de um ancião. Aschenbach observava enojado aquele personagem e suas relações com os amigos. Será que não sabiam, não viam que era um velho, que não tinha o direito a usar roupas como as deles, janotas e coloridas, que não tinha o direito a se fazer passar por um deles? (págs. 19 e 20)
Antes ainda da chegada ao Hotel Excelsior, a figura do gondoleiro, mais uma vez representa o mau agouro do seu destino de viagem, esta passagem também mantida na versão cinematográfica. Um gondoleiro insolente, feio e degenerado lhe conduz a sua sina.
Sua instalação no hotel tem, a principio, o objetivo de preencher duas lacunas, a falta de inspiração pro trabalho e a recente perda da esposa, ao mesmo tempo em que ratifica sua posição de burguês típico, seguidor de severos padrões morais.
Desde seu primeiro contato com o Tadzio (interpretado pelo ator e modelo, de 13 anos, Björn Andressen) um novo universo surge. Em um primeiro momento, o menino simboliza a fusão perfeita de beleza e juventude, porém, assim como o cólera sorrateiramente invade Veneza, a revelia de seus “donos”, a admiração bucólica também transfigura-se em arrebatamento.
Essa transformação do personagem não se dá de forma tranqüila, Gustav busca uma fuga, mas o malogro da investida, um simples problema com a bagagem, acaba por vez, a revelar o motivo de sua aflição. Encontra-se em total estado de paixão, não mais tenta negá-lo, e entrega-se ao prazer de admirar todas as ações do garoto, no café da manhã com a família, na brincadeira com outros amigos na praia, na ida a igreja...
Em breve o observador conhecia cada linha e pose desse corpo tão soberbo, apresentando-se tão livremente; saudava-o de novo toda a beleza, já familiar e não encontrava fim para sua admiração e delicada alegria espiritual [...] seu cabelo cor de mel aninhava-se em cachos nas têmporas e na nuca, o sol iluminava a penugem do dorso superior; o delicado desenho das costelas, a simetria do peito aparecia pela cobertura justa do tronco; suas axilas ainda eram lisas como nas estátuas; os jarretes luziam e as veias azuladas faziam seu corpo parecer feito de uma matéria transparente. (pág. 50)
Toda essa nova rotina nos é apresentada por Visconti através de uma série de consecutivas panorâmicas(9). Aschembach percorre a cidade sem dar-se por conta da chegada do cólera, com o silêncio de moradores, empregados do hotel e da mídia veneziana, que teme, por conseqüência, o abandono dos visitantes. Assim, pouco a pouco, o sisudo senhor de meia idade transforma-se numa caricatura, num novo ser – sonhador, despreocupado com modelos morais e, por fim, decadente.
O filme preserva a inexistência de diálogos entre os dois personagens, no entanto, na concepção de Visconti, Tadzio aparece de forma ambígua, por vezes, receptivo aos olhares de Gustav, por vezes, até mesmo provocativo, criando uma tensão sexual entre os personagens. Compreende-se que a livre adaptação para o cinema, não buscou reproduzir a história contada no romance, deve-se compreender a alteração, pois se trata de diferentes linguagens e visões, além do que o cinema autoral é tão imaginativo e livre quanto qualquer outra manifestação intelectual.
A partir do capítulo 4, há inúmeras indagações de Aschembach quanto à percepção de Tadzio a respeito do seu já explicito sentimento, e a passagem a seguir, demonstra uma das únicas interações entre os personagens, numa noite em que a família polonesa não comparece ao jantar no hotel. O medo provocado pela possibilidade de não mais ver Tadzio fora enorme, assim quando percebeu a entrada da família sua alegria ficou “estampada na cara” o que chama a atenção do garoto.
Não deves sorrir assim! Estás ouvindo? Não se
deve sorrir assim pra ninguém!”
Atirou-se num banco, fora de si, inalando o perfume noturno das plantas. E
reclinado, os braços pendentes, subjugado e sacudido por sucessivos
calafrios,
sussurrou a eterna fórmula do desejo – impossível, nesse caso
absurda, abjeta,
ridícula, mas ainda assim sagrada, mesmo neste caso, digna
“eu te amo”. (PAG. 59)
A narrativa entra em sua parte final, quando Aschembach renega sua identidade e seus padrões morais, entregando-se na busca irracional do seu objeto de desejo.
Acrescentou a seu traje detalhe de efeito jovial, começou a usar pedras preciosas e perfumes, perdia várias horas por dia com sua toalete e vinha para a mesa, enfeitado, excitado e tenso.... Usava gravata vermelha e chapéu de palha de abas largas era rodeado por fitas multicoloridas. (pág. 79)
As cenas finais do filme são retratadas com enorme sensibilidade, um Gustav von Aschembach transfigurado por maquiagem, enfeites e extremamente cansado, uma Veneza vazia e melancólica e uma trilha sonora transcendente, um extrato de Adagieto - Symphony No.5 de Gustav Mahler (10) tudo isso para o belo e trágico, desfecho conhecido desde o título.
BIBLIOGRAFIA:
-MANN, Thomas. Morte em Veneza. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
- COUTINHO E CASTRO, José. Thomas Mann; Ensaios. Lisboa: Livros Horizonte, 1982.
- BAZIN. André. O que é o Cinema – Tradução: Ana Moura Livros. São Paulo: Horizonte, 1992.
- BURKE. Peter. Testemunha Ocular. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
- LEÃO. Beto. Cinema de A a Z – Dicionário do Audiovisual em Goiás. Goiânia, GO: Agencia Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, 2003.
- MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre realidade e o artifício. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2005.
- BECKER, Túio. A Sublime Obsessão. Porto alegre, RS: EDUNISC, 2003.
- EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. São Paulo: L&PM, 1988.
- FERREIRA, Alexandre Maccari, KONRAD, Diorge Alceno. KOFF. Rogério Ferrer. (orgs). Uma História a Cada Filme – ciclo de cinema histórico- vol. 1. Santa Maria, RS: FACOS/UFSM, 2006.
(1) - Tuio Becker - Critico de cinema, trabalhou em jornais como Correio do Povo, Folha da Manhã e Zero Hora, primeiros textos publicados em 1961. Aposentou-se em 2001.
(2) - BAZIN. André. O que é o Cinema (Qu´est ce que le Cinema). São Paulo: Horizontes, 1992.
(3) - BURKE, Peter. Testemunha Ocular. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
(4) - Prêmio Nobel, instituído por Albert Nobel (1833 – 1896), milionário sueco, inventor da dinamite. Deixou em testamento a criação de um fundo que premiasse anualmente as pessoas que mais tivessem contribuído para o desenvolvimento da Humanidade em 5 áreas distintas (física/ química/ medicina/ literatura/ paz), vide testamento em http://www.nobelpreis.org/portugues/index.htm#will.
(5) - Júlia da Siva Bruhns era filha de Johann Ludwig Herrman Bruhns, alemão, residente no Brasil proprietário de fazendas entre Santos e Rio de Janeiro, e de Maria da Silva, brasileira, falecida em 1856. Nasceu em Parati em 1851, mudou-se para a Alemanha, após morte do pai, com apenas 6 anos de idade. Inúmeras referências à mãe podem ser encontardas ao longo da trajetória literária de Thomas Mann, no livro “Morte em Veneza” podemos visualizar tais referências na personagem mãe de Tadzio, interpretada por Silvana Mangano. Faleceu em Webling, Alemanha em 1923.
(6)-Declaração de Mann (1936) – disponível em http:// www.dw-world.de/dw/article/0,2144,34094,00.html
(7) Coco Chanel, uma das figurinistas mais importantes do século XX, nasceu em paris em 1883começou sua vida profissional na confecção de chapéus. Tornou-se reconhecida internacional pela criação de taillers (imortalizados pos Jacqueline Kennedy Onassis) e pelo perfume Chanel n° 5. Faleceu em Paris no ano 1971, sem filhos e casamento, sendo-lhe atribuída a frase, quando pedida em casamento pelo Duque de Windsor, “duques existem muitos na Inglaterra, porém Coco Chanel só há uma”, colocação verdadeira ou não, representa um pouco de sua personalidade ainda viva no imaginário coletivo.
(8) KONRAD, Gláucia Vieira Ramos. O Neo-realismo italiano e Roberto Rosselini: nos 60 anos de Roma, Cidade Aberta. In: Uma História a cada filme: ciclos de cinema histórico.
(9) Panorâmica é a ação de girar a câmera num plano horizontal ou vertical durante a filmagem. É um movimento de câmera que permite explorar certo espaço. Deve ser executado lentamente após filmar por alguns segundos um ponto fixo, seja para a esquerda ou para a direita, e termina igualmente num ponto fixo. In: Cinema de A a Z – dicionário do audiovisual em Goiás.
(10) Gustav Mahler (1860 – 1911) foi um dos mais conhecidos músicos austríacos. Compositor e regente misturava o romântico com o moderno.
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