terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Homenagem a Monicelli no Lanterninha e na Revista Piauí

A Revista Piauí deste mês, Janeiro/11, publicou um artigo sobre a morte do diretor italiano Mario Monicelli, de Marcos Sá Corrêa. O consagrado diretor falaceu no último novembro, 2010.
Neste mês, o Cineclube Lanterninha Aurélio está homenegeando as comédias italianas, e não poderia deixar de fora Mario Monicelli.

Confira abaixo o texto, na íntegra, publicado na Revista Piauí:


A arte de rir de qualquer desgraça

A noite em que o suicídio do cineasta Mario Monicelli foi aplaudido num auditório de tevê

Por: Marcos Sá Corrêa

Faz quase meio século que Brancaleone da Norcia, o Dom Quixote do cinema italiano, veio ao mundo para ficar. Mas seu criador, Mario Monicelli, resolveu aos 95 anos que estava na hora de tornar-se mortal. Antes de começarem as festanças de final de ano, jogou-se da janela de um hospital de Roma. Tinha feito seu último filme de ficção em 2006.

Nonagenário, sobreviveu aos atores que deram cara e voz a suas ideias, assim como Monicelli lhes deu os papéis que os ajudaram a ser inesquecíveis. O comediante Totó morreu há 43 anos. Ugo Tognazzi e Marcello Mastroianni, nos anos 90. Vittorio Gassman e Alberto Sordi, na década passada.

Sem eles e sem seus filmes, Monicelli permaneceu em cena por meio de entrevistas. E suas entrevistas, ao contrário dos filmes, eram cada vez mais exasperadas. Uma de suas últimas aparições ocorreu no programa 1 Su Mille. Monicelli aparece na tela, sentado de esguelha, meio apático, dando a impressão que mal podia esperar a hora de sair dali. Mas é ele, o entrevistado, quem faz a primeira pergunta: “Vocês sabem que não enxergo?”

Apanhada no contrapé, a entrevistadora responde com outra interrogação: “Ah, não enxerga mais?” E, com isso, entrega a Monicelli a direção da entrevista. Velho e doente, ele assume o comando do programa com as credenciais de suas fraquezas físicas. Pede, para começo de conversa, que ela, “por gentileza”, fale com “voz um pouco mais timbrada”, para poder ouvi-la. Ela capricha na dicção: “Assim está bem?” Ele aprova. Pergunta então o que fazer com os óculos de lentes vermelhas, que usa no meio da testa. “Há quem me peça para botá-los. Posso tirar”, disse Monicelli. “Faça como lhe parecer melhor, maestro.”

Maestro ele foi a vida inteira. Primeiro, por “brincadeira”. Sua família e os amigos o tratavam assim, porque desde menino ele se “dava ares”. Mais tarde, consolidou o epíteto mostrando-se naturalmente “despachado” para tomar decisões instantâneas no corre-corre dos estúdios. Aderira ao cinema em 1932, quando “o cinematógrafo tinha 30 anos”. Era o ofício ideal para novatos como ele, dispostos a aprender aquilo “com prazer e paixão”.

Em 1940, quando a Segunda Guerra desmobilizou os estúdios italianos, já havia deixado para trás a cidade de Viareggio, na Toscana. Engavetara para sempre seus diplomas de história e filosofia. Largara o jornalismo. Aos 25 anos, tinha participado de quarenta filmes, como roteirista e assistente de direção. Socialista histórico, virou cineasta na Roma fascista, sem renegar o serviço que o Ministério da Cultura de Benito Mussolini prestou à indústria cinematográfica italiana.

“O cinema nos anos do fascismo era coisa séria”, disse poucos meses atrás a um crítico. Sustentou que, sob Mussolini, só fez filme de propaganda quem quis. Em compensação, o dinheiro do governo formou quadros técnicos, “pessoas boas e modestas, que pensavam não ter grandes qualidades, mas tinham”. Seriam a base do cinema que, a partir de 1950, Roma exportaria para o resto do mundo.

Em 1953, Monicelli usou esse trampolim para lançar-se à direção. Antes de encerrar a década, estava consagrado como “o inventor da comédia à italiana”, com o filme Os Eternos Desconhecidos, de 1958, crônica impagável do fiasco de um grande assalto planejado por golpistas rastaqueras. O diretor passaria o resto do século negando a paternidade dessa arte de rir de qualquer desgraça, seja ela a peste negra, a morte, a miséria, a fome ou
as derrotas.

Achava que nem ele, nem ninguém, precisou inventar, no século XX, a chamada “comédia à italiana”, porque ela já estava incubada na commedia dell’arte, uma tradição de pelo menos 400 anos. Sem contar que, segundo Monicelli, a própria Itália só se tornou o que é, esta “grande península”, graças “a uma comédia”. Referia-se à obra A Divina Comédia, com que Dante transformou o dialeto florentino em idioma oficial dos italianos.

Para fazer Quinteto Irreverente: Meus Caros Amigos 2, não precisou inventar nada. Apropriou-se de histórias “que corriam em Florença”. Só depois se deu conta de que pelo menos uma delas era implausível – a dos tabefes nos passageiros que se debruçam na janela do trem para se despedir dos conhecidos. Gastou uma noite inteira para filmá-la: “O vagão era alto demais. Os figurantes tiveram que se esticar para pôr a cara na rota dos tapas.”

Fazer cinema era, para ele, “muito fácil”. Bastava trabalhar com “atores de talento”. E, quando tudo dava certo, divertir-se. Deu tudo certo com ele “cinco ou seis vezes”. E daí saíram obras-primas como o clássico O Incrível Exército de Brancaleone, de 1965.

Com raízes tão antigas, por que então o veio dá sinais de estar secando? Essa resposta Monicelli guardou para um comício na Piazza del Popolo, em Roma, contra o governo Silvio Berlusconi. Segundo ele, os italianos perdem a graça e a irreverência quando põem “o palhaço lá em cima”. A comédia à italiana só teria vingado nas décadas que separam Mussolini de Berlusconi.

Monicelli tinha respostas engatilhadas para questões recorrentes. Que esperança via para a Itália? “Não diga esta palavra. É feia.” Qual a saída para a crise? “Espero que tudo isso acabe numa bela revolução.”

Depois de 65 filmes e setenta anos de atividade quase ininterrupta, avisou que não tinha mais nada a dizer. “Acabou.” A entrevistadora de 1 Su Mille tentou atacá-lo por outro flanco – o das queixas e remorsos. Monicelli engatou novamente a conversa de que o cinema só lhe deu satisfações. “Nenhuma queixa da vida?” Monicelli se espanta: “Pensei que estávamos falando de cinema. A vida é outra coisa...”

Na vida, às nove da noite da segunda-feira, 29 de novembro de 2010, ele se jogou de uma janela do 5º andar do hospital San Giovanni, em Roma. Tratava desde 2008 de um câncer de próstata. E na última internação confessou aos enfermeiros que andava “profundamente deprimido”.

Chovia forte naquela noite, e seu corpo custou a ser retirado da calçada. Mas a notícia chegou quase instantaneamente ao estúdio da Rai3, interrompendo o programa Vieni Via Con Me – ou Venha Embora Comigo. O apresentador Fabio Fazio comunicou ao auditório que Mario Monicelli acabara de morrer. A plateia aplaudiu de pé.


http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-52/despedida/a-arte-de-rir-de-qualquer-desgraca/



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