domingo, 4 de julho de 2010

Cine Independência, a fábula

Texto, com fotos, publicado originalmente no Caderno Ideias do
Jornal Diário de Santa Maria,RS, Brasil, em 19 de junho de 2010

Diretor e cineclubista relembra o fim do antigo cinema onde funcionará o Shopping Independência

Prólogo – As cadeira retiradas

Entrei na sala do Cine Independência e fui ao mezanino. Lá estava a clássica sala de projeção de Santa Maria sem cadeiras. Tudo vazio. Salão principal e mezanino. A tecnologia do novo século apontava grandes surpresas e inovações, e aquilo bem poderia ser um filme de terror em três dimensões. Não era. Fiquei absorto naquela pálida imagem de um dos mais importantes espaços culturais da cidade totalmente vazio, sem graça, sem nada. Fui avisado por um amigo de que, logo cedo, um caminhão estava à frente do local, cheio de cadeiras. Algumas ainda empilhadas na rua e tantas outras sendo transportadas para outro local. Pelo horário em que o caminhão fora visto ali, o trabalho deveria ter iniciado ainda na madrugada.

É preciso contextualizar que naquele período – entre 2002 e 2004 – eu participava de um grupo de pessoas que espontaneamente se posicionavam pelo tombamento do Cine Theatro Independência, fundado em 1922. Lutávamos para que esse processo fosse, talvez, parcial para não engessar o processo por completo. Por exemplo: se fosse transformado em um centro cultural, benfeitorias poderiam ser realizadas.

Recordo que desejávamos o tombamento do hall de entrada, incluindo as escadarias que davam acesso à sala. Nossa ideia era que o local fosse transformado em um grande espaço artístico, mantendo a entrada principal. E nós, apaixonados por aquele ambiente, sofríamos reveses constantes. Um deles foi quando, de uma hora para outra, começaram a retirada da letra “C” na palavra Cine na fachada (imagem acima, no título da página). Mesmo sabendo que o prédio pertencia à iniciativa privada, mais uma vez fomos nos manifestar contra aquela arbitrariedade.

Lembro ainda que o prédio foi locado para um templo religioso. Isso até 2003, quando entrou em processo de tombamento pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural. Em 2005, a administração municipal comprou o prédio da empresa Plurimus Investimentos & Administração. Nos anos seguintes, iniciou-se a reforma daquele que viria a ser hoje o Shopping Independência.

Retomo aquele fatídico dia das cadeiras. Meu inconsciente me favorece em não ter registrado a data. Lembro de ter sido barrado na entrada do prédio. Eram sabedores das manifestações que fazíamos. A seguir, com a chegada de um funcionário da empresa proprietária da sala, cordialmente obtive a permissão para entrar. Certamente, ele tinha consciência daquilo que o local significava para centenas de pessoas.

Quando cheguei ao mezanino, uma jovem, penso que advogada da empresa – não lembro bem –, também questionou minha presença. Mais uma vez, o funcionário disse que estava tudo bem. Confesso que estava meio perdido com tudo aquilo. O fato era que, naquele momento, apesar de a sala pertencer ao setor privado e, por isso, poderem agir de tal forma, algo nos tinha sido tirado para sempre. Eu então respondi ao questionamento da referida moça, de que minha presença ali já não interessava mais. Tudo já estava feito.

Até hoje, minha impressão é que ninguém que presenciou ou protagonizou aquilo parou para pensar no que representou cada cadeira retirada para deixar o legado de um imenso espaço vazio. Fúnebre. Logo ali, onde aconteceram tantas histórias. Filmes na telona! Teatro! Tertúlias nativistas! Shows! Formaturas! Emoções que só um cinema e o cinema podem permitir.

São sorrisos, lágrimas, apertos de mão e abraços que foram calados. Talvez os pais dos que tentaram barrar minha entrada tenham começado suas histórias ali... Sentados nas cadeiras retiradas, sem que ninguém pudesse fazer nada.

Desencadeamento afetivo

Atualmente, o local aqui tratado é tema de inúmeras conversas. É assunto polêmico. As opiniões são as mais diferentes. Então, quero esclarecer algumas coisas. A ideia inicial deste texto é tratar sobre as questões afetivas do histórico prédio da Praça Saldanha Marinho. Diante dos fatos, é impossível escrever somente nesse sentido. Não me furtarei da opinião ao final deste artigo.

É justo, agora, começar pela fachada do prédio. Mérito de todos aqueles que, mesmo defendendo ali o shopping popular – o que não foi meu caso –, entenderam o significado simbólico do local para Santa Maria. Foi realizado um trabalho na tentativa de recuperar a arquitetura original. E o que temos lá é digno de aplausos. Juntamente com os prédios do Theatro Treze de Maio, da SUCV e da Caixa Econômica Federal, a fachada do Cine Independência deu mais vida à Saldanha Marinho e ao seu entorno. Parar por instantes, abstrair de tudo e mirar aquela fachada é uma viagem ao passado. Um retorno que só as histórias cinematográficas podem nos presentear. Fruir de um momento assim faz lembrar alguns fatos marcantes. Relembro um desses.

Em setembro de 1995, época em que houve o fechamento desse espaço para a projeção de filmes, eu participava da equipe da TV Campus como um neófito comentarista de cinema. Logo após uma gravação na cabine de projeção do Cine Glória, veio a informação do projecionista Vilson Saldanha de que não haveria a sessão da tarde no Independência. Juntamente com o saudoso Sergio de Assis Brasil (falecido em dezembro de 2007), diretor do programa, e outros colegas, rumamos para lá. Acabávamos de encontrar um documentário antigo sobre a UFSM, que o Sergio havia dirigido. Pois fizemos uma sessão histórica. Lá estávamos no mezanino assistindo a um filme local. Para mim, a última sessão do Cine Theatro Independência.

Epílogo: Shopping Independência

A realidade é que o prédio abriga hoje o denominado Shopping Independência, um centro popular de compras, em que muita gente poderá ter seu pequeno empreendimento, seu trabalho e sustento. Para ficar ideal, deveria ser administrado por uma cooperativa formada por aqueles que ali irão trabalhar e, dessa forma, reger esse centro de compras. Também penso que poderia ter sido projetado com mais andares. Esta, obviamente, é a minha opinião. A outra é que sempre fui e continuo sendo a favor do shopping popular. Mas em outro local, mais amplo, onde, além das pessoas que agora irão trabalhar, no futuro outras também tivessem espaço.

Talvez nas proximidades da viação férrea. Um grande prédio que valorizasse a histórica região. Sou contrário ao uso privado das vias públicas por tempo indeterminado, uma situação que estava quase perene em Santa Maria. No caso específico, os canteiros centrais da Avenida Rio Branco e a Praça Saldanha Marinho. A praça e as ruas são para todos. E o Cine Independência, que teve sessões de cinema até a segunda metade da década de 90 e que entrou o novo século como “templo religioso”, agora inicia um novo caminho: o Shopping Independência.

Finalizo, então, solicitando um momento de reflexão: quem sabe uma pequena sala de exibição com 50 a 70 lugares dentro do novo espaço. Já existem muitas pelo país. O que acham?


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LUIZ ALBERTO CASSOL

Diretor de cinema e cineclubista, coordenador do Santa Maria Vídeo e Cinema, presidente da Cesma e integrante do fórum de cinema Entre Fronteiras (Argentina, Brasil e Paraguai)


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O Cine Independência

- Inaugurado em 1922, nas comemorações do centenário da Independência do Brasil, tinha 2 mil lugares



- Ao longo dos anos, passou por várias modificações na fachada e no interior. Além do espaço cinematográfico, o Cine serviu de palco para apresentações teatrais e shows musicais, como a Tertúlia Nativista





- A última sessão ocorreu em 28 de setembro de 1995. Nesse mesmo ano, o edifício foi alugado para a Igreja Universal do Reino de Deus, que saiu de lá em 2003. O prédio foi anunciado para aluguel


Em 2002, defensores do patrimônio de Santa Maria fizeram ato em frente ao prédio que havia sido ocupado por templo religioso e estava à venda



- Em 2005, a prefeitura assumiu o prédio. Surgiu a ideia de fazer ali um centro de compras para abrigar os camelôs em ambulantes da cidade




foto : gabo rodriguez _ mundokino _ 6ª Santa Maria Video e cinema, 2007

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