domingo, 15 de junho de 2008

Lanterninha Aurélio: resistência e história


por Paulo Teixeira, Cineclube Lanterninha Aurélio (RS)
cineclubelanterninhaaurelio@gmail.com

Um dos mais antigos e atuantes cineclubes do Brasil, o Lanterninha Aurélio teve suas atividades iniciadas no final de 1978 na cidade de Santa Maria (RS). Foi criado pelo mesmo grupo de pessoas que havia fundado, em 16 de junho do mesmo ano, a Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria Ltda – CESMA. A cooperativa visava à defesa econômica e cultural de seus associados, que naquele momento encontravam enormes dificuldades de acesso aos livros, objetos raros e de alto custo, e a outros materiais de auxílio à formação.

Do descontentamento com a falta de possibilidades culturais surgiu o Cineclube Lanterninha Aurélio. O nome foi escolhido como homenagem ao funcionário do Cinema Imperial, Aurélio de Souza Lima, responsável, dentre outras coisas, pela manutenção da "ordem" dentro do cinema, sempre com a sua lanterna. Também era ele que acabava liberando a entrada para os guris que não tinham dinheiro para o ingresso. Seu Aurélio acompanhou mais de uma geração de cinéfilos formados em Santa Maria.

O Cineclube nasceu impulsionado pelo desejo de jovens combativos, estudantes da primeira Universidade Federal do interior do país, a Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Estávamos no período final da ditadura militar e a censura era muito forte, porém os militantes estudantis conseguiram com a pró-reitoria a liberação de um projetor de 16mm, alegando que seria montado um grupo de estudos de cinema. Um deles, Paulo dos Santos Pires, estudante do curso de agronomia com passagem pelo movimento sindical paulista, possibilitou o acesso à Dinafilme, distribuidora de filmes do movimento cineclubista brasileiro que viria a ser extinta anos mais tarde, durante o governo Collor.

O grupo utilizava os auditórios da universidade para a exibição de filmes de cunho político. Como militantes que eram, passaram a buscar as bases populares levando as películas para os bairros e vilas periféricas da cidade. Escolhiam os filmes, apresentavam e discutiam com as comunidades o conteúdo exibido, buscando uma reflexão acerca da realidade vivida no País naquele momento. Era uma atividade subversiva e assim passou a ser tratada pelas autoridades. Um dos cineclubistas históricos do Lanterninha, inclusive, até bem pouco tempo ainda respondia a um inquérito na Polícia Federal.

Uma das exibições do cineclube, em dezembro de 2007

Os anos foram passando, o contexto político foi mudando com a Abertura do Regime, as pessoas envolvidas foram terminando seus cursos e deixando Santa Maria. Outras passaram a ter um envolvimento maior, e o Cineclube seguiu uma nova fase, mas sempre buscando novos públicos, ou pessoas sem acesso ao cinema. Até a metade dos anos 80 foram exibidos, em diversos locais da cidade, mais de 200 filmes em 16mm.

Houve uma nova formatação da equipe e do Cineclube que coincidiu com a entrada do VHS no mercado. A CESMA começou a montar uma locadora, tendo como base o conhecimento cinematográfico da experiência cineclubista. As sessões passaram a ter data e local fixo - sempre às 19h das quartas-feiras na sala 07 da antiga reitoria, no centro da cidade. Assim foi possível trabalhar com ciclos temáticos, explorando a filmografia de determinados diretores e vários temas até 1995.

O cenário mudou novamente, a sala 07 foi requisitada pela Universidade e o grupo de trabalho perdeu peças, passando por um período de inatividade. No entanto, o Cineclube permaneceu no "inconsciente coletivo da cidade", pois algumas sessões continuaram acontecendo, mesmo que isoladas.

Mostra de filmes em homenagem ao ator e diretor Mazzaropi

Em 1995 foi criado o Otelo Cineclube, ligado ao Sindicato dos Bancários de Santa Maria, que funcionou até o final do ano seguinte. A TV OVO - Oficina de Vídeo também criou e manteve o Cineclube Porão durante o ano de 2001. Em 2003, as pessoas envolvidas com esses cineclubes se reuniram novamente para retomar as atividades do Lanterninha Aurélio. Inicialmente, as sessões ocorriam na Casa de Cultura, dentro do projeto Curta nas Quartas, sempre às 19h com entrada franca. Este espaço consolidou a ação do Lanterninha Aurélio nessa nova fase de atividades, voltada para a filmografia nacional e que durou até 2005.

Em novembro de 2005, a CESMA fundou a sua sede própria e o Lanterninha ganhou um espaço definitivo na rua Professor Braga, 55, centro de Santa Maria. Desde então, o projeto cresceu e inúmeras ações estão sendo desenvolvidas. Além da clássica quarta-feira, foram retomadas as exibições itinerantes, as oficinas de cineclubismo na cidade e na região central, os grupos de estudos e uma maior inserção junto ao movimento cineclubista nacional e ibero-americano.

Dessa forma, em 2006 a cidade de Santa Maria foi sede da 26ª Jornada Nacional de Cineclubes e do II Encontro Ibero-americano de Cineclubes, registrando o nome da cidade e do Cineclube Lanterninha Aurélio na história do movimento. Reconhecimento merecido, devido à longa tradição da cidade com o cineclubismo e ao empenho de diversos amantes do cinema, que mesmo de diferentes gerações aproximam-se pela mesma paixão.

Hoje, o presidente do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros, Antônio Claudino de Jesus, ocupa a cadeira da Vice-Presidência da Federação Internacional de Cineclubes, permitindo, dentre outras diversas ações, o intercâmbio de produções cinematográficas de países interessados. Passamos então a ter acesso a uma filmografia mundial que não encontra espaço de exibição em salas convencionais, preocupadas exclusivamente com o lucro certo e fácil. Esta é uma das funções de qualquer cineclube responsável, romper com aquela lógica de exibição. O Lanterninha Aurélio nunca exibirá um blockbuster americano.

O cineclubismo brasileiro completa, em 2008, 80 anos de atividade. Resistiu à Ditadura Militar e foi responsável também pela formação de gerações de cineastas e profissionais da área. Cumpre a função de proteger a cultura do país contra a invasão hegemônica de um único modo de se fazer cinema. O cineclubismo faz parte do processo cinematográfico não de forma alienada, mas combativa.

O CNC vem conseguindo abrir espaços de interlocução com várias entidades da sociedade civil. Logo teremos um novo cenário e o Lanterninha Aurélio tem orgulho de fazer parte desse processo, já que ocupa, através da pessoa do Luiz Alberto Cassol, a vice-presidência do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros.


* texto publicado em www.cinemativo.com/conteudo_cineclubes/relatos

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